Bruno Nunes Batista e Fábio Chang de Almeida


O PAPEL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA NO CONTEXTO PÓS-ESTRUTURALISTA: REFLEXÕES SOBRE A DOCÊNCIA NOS ENSINOS FUNDAMENTAL E MÉDIO


Palavras de abertura

Ao compartilharmos algumas reflexões sobre o papel dos professores de História e Geografia, estaremos nos alicerçando num projeto de Educação Menor. Corolário de uma junção da Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze com a Pedagogia de Silvio Gallo, trata-se de uma possibilidade que não almeja produzir o melhor dos mundos através do ensino, mas sim dar uma outra apresentação aos conteúdos escolares por meio de um trabalho de criação do professor, cuja amplitude é limitada por cada arranjo local, cultural e histórico. Com efeito, estamos falando de uma intenção que busca enaltecer o papel autoral na docência. É por isso que, na esteira desse processo, também nos utilizaremos das operações presentes na Didática da Tradução, onde o pensamento de Sandra Mara Corazza e outros nos será de grande valia.
        
Por uma “Educação Menor”

Com o objetivo de atribuir um pouco mais de significado aos conteúdos de História e Geografia para os alunos da Escola Básica, nossa intenção é demonstrar que a contemporaneidade exige uma outra atitude pedagógica, certamente não aquela redentora, finalista, messiânica e ritualizada da Modernidade. Em outros termos, precisamos de uma pedagogia menor, que nos permita falar em nome próprio.

Um profícuo começo de conversa é lembrarmos a Didática Magna de Comenius. Neste verdadeiro tratado, cuja pretensão já estaria no seu próprio subtítulo – “ensinar tudo a todos”, temos acesso a um conjunto de prescrições endereçado ao público docente. Envolto por um cenário de massificação da escola pública e em meio às explosões demográficas no ocidente europeu, o líder religioso Comenius não se furta da complexa tarefa de conduzir os professores a um estágio ideal de ensino e aprendizagem, orientando-os detalhadamente sobre as maneiras corretas de se empreender um trabalho pedagógico. Pelo rigor das suas proposições e a extensão das suas receitas didáticas, muitos especialistas consideram, com certa dose de razão, a Didática Magna como obra fundadora da Pedagogia Moderna, surtindo seus efeitos até a contemporaneidade. Não iremos retomar linha por linha o pensamento comeniano. Vamos, porém, destacar duas consequências ainda presentes na formação docente.

Em primeiro lugar, cremos que o maior legado deixado por essa célebre obra foi constituir a base do que Veiga-Neto conceituou como as pragas pedagógicas. Na visão desse pesquisador, características comuns nas licenciaturas, sejam elas o excesso de metodologias e receituários didáticos, assim como os messianismos delirantes que desejam reformar o mundo através da educação, foram fortalecidos na esteira da proposta de Comenius. Como resultado, não apenas somos cobrados como também tendemos a esperar da educação e dos nossos componentes curriculares aquilo que eles, talvez, não possam por si só nos oferecer (VEIGA-NETO, 2012). Se lembrarmos que entre as exigências de uma suposta educação contemporânea estariam a formação de sujeitos não apenas em termos de conhecimentos, mas também no que tange à cidadania, ao mercado de trabalho, ao espírito científico, à cultura pluralista e aos direitos humanos, é possível quem sabe perceber como as teleologias pedagógicas têm um grande potencial para nos frustrar.

A segunda consequência também nos preocupa. É compreensível a força que Comenius despendeu em descrever passo a passo os processos de ensino e aprendizagem. Basta lembrarmos que, quando a escola se massifica, não haviam professores formados em número suficiente: leigos, de fato, passaram a lecionar nas escolas, e algum alicerce se fez efetivamente necessário. No entanto, como nos explica Alves, essa precária perspectiva inicial também acabou se desdobrando, por tabela, numa perda da autoria do professor nas décadas seguintes (ALVES, 2005). Tendo antes um papel de construtor rigoroso dos seus materiais didáticos (vertidos a um compêndio), gradativamente ele foi tornando-se mero receptáculo de livros e receituários pedagógicos, que não só se baseavam nas pragas pedagógicas enumeradas por Veiga-Neto como, principalmente, estabeleciam minuciosamente o que o docente deveria fazer em sala de aula. Quando pensamos na enxurrada de materiais de apoio, planos de aula, formações pedagógicas e palestras dirigidas atualmente aos professores, não há como não remeter esse quadro às bases construídas na Didática Magna.

É óbvio que essas duas perspectivas não se coadunam a uma proposta que deseja transpor didaticamente os conteúdos históricos e geográficos para os Ensinos Fundamental e Médio. Por dois simples motivos. Inicialmente, porque há um caráter subjetivo nessas duas disciplinas que não se encaixa, de antemão, a um presente educacional em que termos como eficiência, eficácia, produtividade, cientificidade e empreendedorismo rondam – às vezes mais do que deveriam – os currículos da Escola Básica. De forma semelhante, são as próprias características conjunturais, circunstanciais, subjetivas, imprevisíveis - e mesmo acidentais - encontradas em parte significativa das reflexões das Ciências Humanas, que inviabilizam um planejamento docente ancorado em planos de aula construídos a priori por alguém de fora do contexto escolar. Com efeito, é assumindo um papel de criação artesanal, procurando fazer da sua aula uma obra de arte mais do que um manual mecânico, que o professor das humanidades consegui marcar terreno num panorama que só pode ser autoral.

No bojo dessa perspectiva que estamos assumindo, um pensamento como o de Sílvio Gallo nos é de indiscutível valia. Seguindo um fio filosófico preconizado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, esse autor propõe o que chama de Educação Menor (GALLO, 2016). Como no nome da mesma já nos possibilita inferir, trata-se de um ponto de vista que rejeita o papel do professor como simples executor de manuais didáticos. Por isso mesmo, suspeita das características disseminadas por um pensamento pedagógico hegemônico, que divide moradia com os parâmetros e as diretrizes da Educação Nacional que só serviriam à manutenção do status quo. Desse lugar-comum são disparadas as ordens que estão “sempre a nos dizer o que ensinar, como ensinar, para quem ensinar, por que ensinar” (GALLO, 2016, p. 65). É esse o lugar onde a Educação Menor não quer estar e que combate cotidianamente. Sem a pretensão de alcançar o melhor dos mundos, a tão sonhada Totalidade, encontramos nessa proposta um tour de force que libera o pensamento docente de um sono pedagógico e lhe permite a constituição de uma singularidade criativa, a fim de empreender aulas que desequilibrem não só os alunos, como também o professor em si mesmo.

Nessa conjuntura que não se fecha, mas está sempre em aberto e no devir, o trabalho docente não segue modelos nem, tampouco, impõe soluções. Sabe conscientemente que os universais ficam do lado de fora da sala de aula, e só são bem-vindos quando utilizados à guisa de desconstrução. Em outro viés, o professor que pratica a Educação Menor igualmente sabe muito bem que o currículo que lhe é imposto para executar, como se fosse ele um “apertador de botões” de uma fábrica fordista, não é sagrado e nem biblicamente intocável, mas um pergaminho maleável e híbrido, cheio de frestas e linhas de fuga (DELEUZE, 1990) que permitem a introjeção de elementos novos e vivos. Por outro lado, esse docente também sabe que as matrizes de referências e as bases curriculares de boas samaritanas nada têm, sendo infiltradas por relações de poder e saber de ponta a ponta; logo, ele põe sob vigilância essas diretrizes, até mesmo indo de encontro a elas em diversos momentos.

Num caminho que se desenrola na mesma postura de Sílvio Gallo, poderíamos nos valer do pensamento de Sandra Mara Corazza. Tocando um projeto nos últimos anos que têm como base defender o professor como um artista da aula, tal autora construiu uma sólida matriz conceitual que podemos resumir como a Didática da Tradução. Segundo a autora, a aula, enquanto transposição de um currículo, abarca uma faixa tradutória, e nessa estariam incluídas tanto as aulas pretensamente boas quanto as supostamente ruins (CORAZZA, 2008, 2013). Portanto, todo professor elabora sua marca tradutória, que faz do currículo construído uma peça transformada, transfigurada, imbuída das impressões que ele elaborou. É verdade que o professor não pode virar as costas para os currículos oficiais; todavia, eles tanto não podem ser fielmente replicados, tal como cada docente impõe uma marca e um olhar pessoal sobre esses arquivos. Por consequência, o professor-tradutor não deve estar em posição de dívida com o currículo “original”. Visto que a tradução do currículo não é uma imagem e tampouco uma cópia, no processo tradutório ela atravessa uma transformação. É por isso que a tradução do conhecimento, quando não tem a pretensão de copiá-lo, atribui vitalidade ao currículo original, pode completá-lo e mesmo engrandecê-lo, ainda que provisoriamente, pois as aulas são, também, temporárias.

Conforme sugere Corazza, o processo didático-tradutório pode operar-se através de alguns estádios metodológicos: a) o nível curricular, edificado a partir da deliberação do professor acerca de quais temáticas são significativas; b) a irreverência temática, isto é, a possibilidade de caos e criatividade que poderia problematizar o pensamento; c) o manejo da linguagem educacional, tocando a multiplicidade de instrumentos da língua, sendo o teatro, a poesia, a música e os intertextos vistos como formas de variar o estado da arte pedagógico; e d) o ajuste, isto é, o planejamento artesanal que elabora detalhes, sequências e momentos de desequilíbrio que energizam a aula (CORAZZA, 2013).

Considerações Finais

Com um pé na Educação Menor e outro na Didática da Tradução, pensamos ter disponível um motor de transmissão que torna o ensino de História e Geografia mais significativo e diferente. Sem a busca da verdade positivista, e evitando os campos minados da Redenção Iluminista e sua Modernidade Pedagógica. Não nos interessa considerar nossa didática como a mais correta. Não temos o direito de prescrever aos professores como dar as suas aulas. Opostamente a tudo isso, nosso objetivo é sinalizar alguns enfoques e lançar algumas reflexões, principalmente, para mostrar que, como professores-criadores, podemos ser mais livres do que pensávamos ser.

À frente do enfoque, deixamos em relevo a seletividade dos componentes curriculares que enaltecem algumas linhas de trabalho enquanto suplantam outras. Tributários da fórmula comeniana, que supunha uma organização do trabalho didático submissa a rotinas previstas a priori por especialistas e manuais de apoio, ainda somos reféns de uma condição subalterna, cujo principal desejo é expelir do seu seio conteúdos e expressões que expressem diferença e criatividade. No entanto, uma vez munidos de uma abordagem Pós-Estruturalista, que rejeita a noção de totalidade e trabalha por efeitos singulares, talvez possamos trabalhar e pensar nossa docência de uma outra maneira, procurando restabelecer uma autoria que nos foi barrada, mas que permanece sendo nosso maior patrimônio.

Referências
Bruno Nunes Batista é Licenciado em Geografia. Mestre e Doutor em Geografia. Professor de Geografia no Instituto Federal Catarinense.

Fábio Chang de Almeida é Licenciado em História e Geografia. Especialista em Psicopedagogia e Tecnologias da Informação e Comunicação. Mestre e Doutor em História. Professor de História na Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

ALVES, GL. O trabalho didático na escola moderna: formas históricas. Campinas: Autores Associados, 2005.

COMENIUS, J. Didática magna. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

CORAZZA, SM. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2008

CORAZZA, SM. Didática-artista da tradução: transcriações. Mutatis Mutandis: Revista Latinoamericana de Traducción, Universidad de Antioquia, v. 6, n. 1, 2013.

DELEUZE, G. Que és un dispositivo? In: BALIBAR, Etinenne; DREYFUS, Hubert (Orgs). Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990.

GALLO, S. Deleuze & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

VEIGA-NETO, A. É preciso ir aos porões. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 50, mai.-ago. 2012.

5 comentários:

  1. Maria Rocha Rodrigues8 de abril de 2019 às 13:05

    Boa tarde
    Gostaria primeiro de dizer que gostei muito do texto de vocês. É muito interessante, nesse momento em que somos atropelados ora pela sanha por avaliações materializada na BNCC, ora pelas sandices de um governo que nada sabe de educação, ter contato com a produção de autores que veem os professores como intelectuais criativos e produtores de conhecimento.
    A pergunta que tenho a fazer refere-se à formação desses professores. Se o que importa é o local, a "pedagogia menor", a criatividade sem receitas prévias, como formar esses professores para tornar possível sua atuação?

    Grata

    Maria Rocha Rodrigues

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite, Maria!
      Talvez a questão não seja abdicar das didáticas estabelecidas, mas sim imbricá-las à nossa experiência. Em outras palavras, que não façamos nossas aulas por meio da tutela de especialistas pedagógicas; que, ao contrário, partamos da nossa autoria e da possibilidade de inventar novas formas de uso e expressão do ensino de História. Pensamos que a reivindicação do nosso texto é pela liberdade da autoria, o que muitas vezes fica em aberto nos cursos de formação inicial e (principalmente) continuada de professores...)
      Abraços,
      Bruno Nunes Batista
      Fabio Chang de Almeida.

      Excluir
  2. Olá,
    lendo o texto de vocês, me veio a memória dois textos que seguem uma linha parecida de raciocínio (ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Por um ensino que deforme: o docente na pós-modernidade) e (HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade).

    Entendo e concordo que devemos ter uma visão crítica desse saber que quer a tudo e a todos homogeneizar.
    No entanto, na vida prática, é preciso mobilizar certos repertórios do conhecimento. Sendo assim, gostaria de saber se na visão de vocês, essa "educação menor" se dá no âmbito de uma postura docente contra hegemônica e/ou no uso de outros suporte como o teatro, a poesia, citado acima? Porque mesmo o uso de recursos considerados auxiliares ao livro didático, ao uso de alguma fonte histórica convencional, como mobilizar os licenciandos não só para uma outra forma de ensinar como uma outra postura diante do saber e do poder?


    Natanael de Freitas Silva

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Em primeiro lugar, agradecemos por compartilhar os textos, Natanael!
      Bem, com relação à tua pergunta... na linha da "Educação Menor" pensada pelo Silvio Gallo, a postura é, ao mesmo tempo, contra-hegemônica e complexa, isto é, que se vale das artes para dar vida aos conteúdos. Concordamos com ele.
      Entretanto, sempre é arriscado - e até mesmo ingênuo... - dizer que estamos sendo contra-hegemônicos. Cremos que seja mais "pé no chão" dizer que o caminho mais viável seja o da suspeita, ou da crítica permanente, como diria Kant.
      Já quanto ao uso das artes como recursos didáticos, caberia a cada docente desenvolver seus próprios usos e ferramentas de expressão. Em resumo, virar-se! Mas sim, nos interessa muito instrumentos como a música, a poesia e o teatro. Talvez a melhor forma de mobilizar os licenciados seja demonstrar a relação entre a História e a Cultura Pop, como as histórias em quadrinhos, o cinema e etc, para quem sabe inspira-los de alguma forma - mas sem a pretensão de produzir receitas metodológicas.
      Abraços
      Bruno Nunes Batista.
      Fabio Chang de Almeida.

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.