O PAPEL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA E
GEOGRAFIA NO CONTEXTO PÓS-ESTRUTURALISTA: REFLEXÕES SOBRE A DOCÊNCIA NOS
ENSINOS FUNDAMENTAL E MÉDIO
Palavras de abertura
Ao compartilharmos algumas reflexões sobre o papel
dos professores de História e Geografia, estaremos
nos alicerçando num projeto de Educação Menor. Corolário de uma junção da
Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze com a Pedagogia de Silvio Gallo,
trata-se de uma possibilidade que não almeja produzir o melhor dos mundos
através do ensino, mas sim dar uma outra apresentação aos conteúdos escolares por meio de um trabalho de criação
do professor, cuja amplitude é limitada por cada arranjo local, cultural e
histórico. Com efeito, estamos falando de uma intenção que busca
enaltecer o papel autoral na docência. É por isso que, na esteira desse
processo, também nos utilizaremos das operações presentes na Didática da
Tradução, onde o pensamento de Sandra Mara Corazza e outros nos será de grande
valia.
Por uma “Educação Menor”
Com o objetivo de
atribuir um pouco mais de significado aos conteúdos de História e Geografia
para os alunos da Escola Básica, nossa intenção é demonstrar que a
contemporaneidade exige uma outra atitude pedagógica, certamente não aquela redentora,
finalista, messiânica e ritualizada da Modernidade. Em outros termos,
precisamos de uma pedagogia menor,
que nos permita falar em nome próprio.
Um profícuo começo de conversa é lembrarmos a Didática Magna de Comenius. Neste verdadeiro tratado, cuja pretensão já estaria no seu
próprio subtítulo – “ensinar tudo a todos”, temos acesso a um conjunto de
prescrições endereçado ao público docente. Envolto por um cenário de
massificação da escola pública e em meio às explosões demográficas no ocidente europeu,
o líder religioso Comenius não se furta da complexa tarefa de conduzir os
professores a um estágio ideal de ensino e aprendizagem, orientando-os
detalhadamente sobre as maneiras corretas de se empreender um trabalho
pedagógico. Pelo rigor das suas proposições e a extensão das suas receitas
didáticas, muitos especialistas consideram, com certa dose de razão, a Didática Magna como obra fundadora da
Pedagogia Moderna, surtindo seus efeitos até a contemporaneidade. Não iremos
retomar linha por linha o pensamento comeniano. Vamos, porém, destacar duas
consequências ainda presentes na formação docente.
Em
primeiro lugar, cremos que o maior legado deixado por essa célebre obra foi
constituir a base do que Veiga-Neto conceituou como as pragas pedagógicas. Na visão desse pesquisador, características
comuns nas licenciaturas, sejam elas o excesso de metodologias e receituários
didáticos, assim como os messianismos delirantes que desejam reformar o mundo
através da educação, foram fortalecidos na esteira da proposta de Comenius.
Como resultado, não apenas somos cobrados como também tendemos a esperar da
educação e dos nossos componentes curriculares aquilo que eles, talvez, não
possam por si só nos oferecer (VEIGA-NETO, 2012). Se lembrarmos que entre
as exigências de uma suposta educação contemporânea estariam a formação
de sujeitos não apenas em termos de conhecimentos,
mas também no que tange à cidadania, ao mercado de trabalho, ao espírito
científico, à cultura pluralista e aos direitos humanos, é possível quem sabe
perceber como as teleologias pedagógicas têm um grande potencial para nos
frustrar.
A
segunda consequência também nos preocupa. É compreensível a força que Comenius
despendeu em descrever passo a passo os processos de ensino e aprendizagem. Basta lembrarmos que, quando a escola se massifica, não
haviam professores formados em número suficiente: leigos, de fato, passaram a
lecionar nas escolas, e algum alicerce se fez efetivamente necessário. No
entanto, como nos explica Alves, essa precária perspectiva inicial também
acabou se desdobrando, por tabela, numa perda da autoria do professor nas
décadas seguintes (ALVES, 2005). Tendo antes um papel de construtor rigoroso dos seus
materiais didáticos (vertidos a um compêndio), gradativamente ele foi tornando-se
mero receptáculo de livros e receituários pedagógicos, que não só se baseavam
nas pragas pedagógicas enumeradas por Veiga-Neto como, principalmente,
estabeleciam minuciosamente o que o docente deveria fazer em sala de aula.
Quando pensamos na enxurrada de materiais de apoio, planos de aula, formações
pedagógicas e palestras dirigidas atualmente aos professores, não há como não
remeter esse quadro às bases construídas na Didática
Magna.
É
óbvio que essas duas perspectivas não se coadunam a uma proposta
que deseja transpor didaticamente os conteúdos históricos e geográficos para os Ensinos Fundamental e Médio. Por dois simples motivos. Inicialmente, porque há um
caráter subjetivo nessas duas disciplinas que não se
encaixa, de antemão, a um presente educacional
em que termos como “eficiência”, “eficácia”, “produtividade”, “cientificidade” e “empreendedorismo” rondam – às vezes mais do que deveriam – os currículos da
Escola Básica. De forma semelhante, são as
próprias características conjunturais, circunstanciais, subjetivas, imprevisíveis - e mesmo acidentais - encontradas em parte significativa das reflexões
das Ciências Humanas, que inviabilizam um
planejamento docente ancorado em planos de aula construídos a priori por alguém de fora do contexto
escolar. Com efeito, é assumindo um papel de criação artesanal, procurando
fazer da sua aula uma obra de arte mais do que um manual mecânico, que o professor das humanidades conseguirá marcar terreno num panorama que só pode ser autoral.
No
bojo dessa perspectiva que estamos assumindo, um pensamento como o de Sílvio
Gallo nos é de indiscutível valia. Seguindo um fio filosófico preconizado por
Gilles Deleuze e Félix Guattari, esse autor propõe o que chama de Educação
Menor (GALLO, 2016). Como no nome da mesma já nos possibilita inferir, trata-se
de um ponto de vista que rejeita o papel do professor como simples executor de
manuais didáticos. Por isso mesmo, suspeita das características disseminadas
por um pensamento pedagógico hegemônico, que divide moradia com os parâmetros e
as diretrizes da Educação Nacional que só serviriam à manutenção do status quo. Desse lugar-comum são
disparadas as ordens que estão “sempre a nos dizer o que ensinar, como ensinar,
para quem ensinar, por que ensinar” (GALLO, 2016, p. 65). É esse o lugar onde a Educação Menor não quer estar e que combate cotidianamente. Sem a pretensão de alcançar o
melhor dos mundos, a tão sonhada “Totalidade”, encontramos nessa proposta um tour de force que libera o pensamento docente de um sono pedagógico
e lhe permite a constituição de uma singularidade criativa, a fim de empreender
aulas que “desequilibrem” não só os alunos, como também o professor em si mesmo.
Nessa
conjuntura que não se fecha, mas está sempre em aberto e no devir, o trabalho
docente não segue modelos nem, tampouco, impõe soluções. Sabe conscientemente
que os universais ficam do lado de fora da sala de aula, e só são bem-vindos
quando utilizados à guisa de desconstrução. Em outro viés, o professor que
pratica a Educação Menor igualmente sabe muito bem que o currículo que lhe é
imposto para executar, como se fosse ele um “apertador de botões” de uma
fábrica fordista, não é sagrado e nem biblicamente intocável, mas um pergaminho
maleável e híbrido, cheio de frestas e linhas de fuga (DELEUZE, 1990) que
permitem a introjeção de elementos novos e vivos. Por outro lado, esse docente
também sabe que as matrizes de referências e as bases curriculares de boas
samaritanas nada têm, sendo infiltradas por relações de poder e saber de ponta
a ponta; logo, ele põe sob vigilância essas diretrizes, até mesmo indo de
encontro a elas em diversos momentos.
Num
caminho que se desenrola na mesma postura de Sílvio Gallo, poderíamos nos valer do pensamento de Sandra Mara Corazza.
Tocando um projeto nos últimos anos que têm como base defender o professor como um artista da aula, tal autora construiu
uma sólida matriz conceitual que podemos resumir como a Didática da Tradução.
Segundo a autora, a aula, enquanto transposição de um currículo, abarca uma
faixa tradutória, e nessa estariam incluídas tanto as aulas pretensamente boas
quanto as supostamente ruins (CORAZZA, 2008, 2013). Portanto, todo professor elabora sua marca tradutória, que
faz do currículo construído uma peça transformada, transfigurada, imbuída das
impressões que ele elaborou. É verdade que o professor não pode virar as costas
para os currículos oficiais; todavia, eles tanto não podem ser fielmente
replicados, tal como cada docente impõe uma marca e um olhar pessoal sobre
esses arquivos. Por consequência, o professor-tradutor não deve estar em
posição de dívida com o currículo “original”. Visto que a tradução do currículo
não é uma imagem e tampouco uma cópia, no processo tradutório ela atravessa uma
transformação. É por isso que a tradução do conhecimento, quando não tem a
pretensão de copiá-lo, atribui vitalidade ao currículo original, pode
completá-lo e mesmo engrandecê-lo, ainda que provisoriamente, pois as aulas
são, também, temporárias.
Conforme
sugere Corazza, o processo didático-tradutório pode operar-se através de alguns
estádios metodológicos: a) o nível curricular, edificado a partir da
deliberação do professor acerca de quais temáticas são significativas; b) a
irreverência temática, isto é, a possibilidade de caos e criatividade que
poderia problematizar o pensamento; c) o manejo da linguagem educacional,
tocando a multiplicidade de instrumentos da língua, sendo o teatro, a poesia, a
música e os intertextos vistos como formas de variar o estado da arte
pedagógico; e d) o ajuste, isto é, o planejamento artesanal que elabora
detalhes, sequências e momentos de desequilíbrio que energizam a aula (CORAZZA, 2013).
Considerações Finais
Com
um pé na Educação Menor e outro na Didática da Tradução, pensamos ter
disponível um motor de transmissão que torna o ensino de História e Geografia mais significativo e diferente. Sem a busca da verdade
positivista, e evitando os campos minados da Redenção Iluminista e sua
Modernidade Pedagógica. Não nos interessa
considerar nossa didática como a mais correta. Não
temos o direito de prescrever aos professores como dar as suas aulas.
Opostamente a tudo isso, nosso objetivo é sinalizar alguns enfoques e lançar
algumas reflexões, principalmente, para mostrar que,
como professores-criadores, podemos ser mais livres do que pensávamos ser.
À
frente do enfoque, deixamos em relevo a seletividade dos componentes
curriculares que enaltecem algumas linhas de trabalho enquanto suplantam
outras. Tributários da fórmula comeniana, que supunha uma organização do
trabalho didático submissa a rotinas previstas a priori por especialistas e manuais de apoio, ainda somos reféns
de uma condição subalterna, cujo principal desejo é expelir do seu seio
conteúdos e expressões que expressem diferença e criatividade. No entanto, uma
vez munidos de uma abordagem Pós-Estruturalista, que rejeita a noção de
totalidade e trabalha por efeitos singulares, talvez possamos trabalhar e
pensar nossa docência de uma outra maneira, procurando restabelecer uma autoria
que nos foi barrada, mas que permanece sendo nosso maior patrimônio.
Referências
Bruno Nunes
Batista é Licenciado em Geografia. Mestre e Doutor em Geografia. Professor de
Geografia no Instituto Federal Catarinense.
Fábio Chang de
Almeida é Licenciado em História e Geografia. Especialista em Psicopedagogia e
Tecnologias da Informação e Comunicação. Mestre e Doutor em História. Professor
de História na Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
ALVES,
GL. O trabalho didático na escola moderna: formas históricas. Campinas: Autores
Associados, 2005.
COMENIUS,
J. Didática magna. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CORAZZA,
SM. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre:
Sulina, Editora da UFRGS, 2008
CORAZZA,
SM. Didática-artista da tradução: transcriações. Mutatis Mutandis: Revista
Latinoamericana de Traducción, Universidad de Antioquia, v. 6, n. 1, 2013.
DELEUZE,
G. Que és un dispositivo? In: BALIBAR, Etinenne; DREYFUS,
Hubert (Orgs). Michel
Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990.
GALLO,
S. Deleuze & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
VEIGA-NETO,
A. É preciso ir aos porões. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 50,
mai.-ago. 2012.
Boa tarde
ResponderExcluirGostaria primeiro de dizer que gostei muito do texto de vocês. É muito interessante, nesse momento em que somos atropelados ora pela sanha por avaliações materializada na BNCC, ora pelas sandices de um governo que nada sabe de educação, ter contato com a produção de autores que veem os professores como intelectuais criativos e produtores de conhecimento.
A pergunta que tenho a fazer refere-se à formação desses professores. Se o que importa é o local, a "pedagogia menor", a criatividade sem receitas prévias, como formar esses professores para tornar possível sua atuação?
Grata
Maria Rocha Rodrigues
Boa noite, Maria!
ExcluirTalvez a questão não seja abdicar das didáticas estabelecidas, mas sim imbricá-las à nossa experiência. Em outras palavras, que não façamos nossas aulas por meio da tutela de especialistas pedagógicas; que, ao contrário, partamos da nossa autoria e da possibilidade de inventar novas formas de uso e expressão do ensino de História. Pensamos que a reivindicação do nosso texto é pela liberdade da autoria, o que muitas vezes fica em aberto nos cursos de formação inicial e (principalmente) continuada de professores...)
Abraços,
Bruno Nunes Batista
Fabio Chang de Almeida.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirlendo o texto de vocês, me veio a memória dois textos que seguem uma linha parecida de raciocínio (ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Por um ensino que deforme: o docente na pós-modernidade) e (HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade).
Entendo e concordo que devemos ter uma visão crítica desse saber que quer a tudo e a todos homogeneizar.
No entanto, na vida prática, é preciso mobilizar certos repertórios do conhecimento. Sendo assim, gostaria de saber se na visão de vocês, essa "educação menor" se dá no âmbito de uma postura docente contra hegemônica e/ou no uso de outros suporte como o teatro, a poesia, citado acima? Porque mesmo o uso de recursos considerados auxiliares ao livro didático, ao uso de alguma fonte histórica convencional, como mobilizar os licenciandos não só para uma outra forma de ensinar como uma outra postura diante do saber e do poder?
Natanael de Freitas Silva
Em primeiro lugar, agradecemos por compartilhar os textos, Natanael!
ExcluirBem, com relação à tua pergunta... na linha da "Educação Menor" pensada pelo Silvio Gallo, a postura é, ao mesmo tempo, contra-hegemônica e complexa, isto é, que se vale das artes para dar vida aos conteúdos. Concordamos com ele.
Entretanto, sempre é arriscado - e até mesmo ingênuo... - dizer que estamos sendo contra-hegemônicos. Cremos que seja mais "pé no chão" dizer que o caminho mais viável seja o da suspeita, ou da crítica permanente, como diria Kant.
Já quanto ao uso das artes como recursos didáticos, caberia a cada docente desenvolver seus próprios usos e ferramentas de expressão. Em resumo, virar-se! Mas sim, nos interessa muito instrumentos como a música, a poesia e o teatro. Talvez a melhor forma de mobilizar os licenciados seja demonstrar a relação entre a História e a Cultura Pop, como as histórias em quadrinhos, o cinema e etc, para quem sabe inspira-los de alguma forma - mas sem a pretensão de produzir receitas metodológicas.
Abraços
Bruno Nunes Batista.
Fabio Chang de Almeida.