Bruno Rafael Véras de Morais e Silva e Tatiane de Lima Santos


LINGUAGEM E EDUCAÇÃO HISTÓRICA: PENSANDO O PROJETO BAQUAQUA


O Projeto Baquaqua é uma ação de história pública e ele parte de uma dupla reflexão. De lado tem como pressuposto ser uma ferramenta de atuação política no campo de educação e do outro um espaço de debates e construção de conhecimento acadêmico. O formato escolhido para o desenvolvimento deste projeto foi o da historiografia digital (Digital History) através de website, mídias sociais, vídeo profile, além de publicações acadêmicas formais. [DOUGHERTY; NAWROTZKI, 2013].

Este artigo pretende-se essencialmente transdisciplinar. Ele divide-se em 3 diferentes seções, escritas de forma conjunta a partir de diálogo entre conhecimento histórico e produção cultural. A primeira seção contextualiza de forma breve as premissas e objetivos do Projeto Baquaqua enquanto ação de história pública e digital. A discussão de alguns conceitos históricos, para pensar a trajetória do personagem, foram essenciais na construção do projeto e são descritas nesta seção. Estes objetivos e pressupostos conceituais foram pensados incialmente dentro do contexto nacional Brasileiro. Com a incorporação de novos membros vindos da América do Norte, Caribe e África, novos debates foram feitos dentro do projeto. Isto fez com que tanto reflexões sobre a trajetória do personagem, quanto objetivos atitudinais dentro do Projeto fossem descolados para contextos mais amplos. Contudo, a centralidade dos conceitos de diversidade, empatia e descolonialidades mantiveram-se. Isto será debatido na segunda parte deste artigo, relatando como isto teve se der traduzido no campo da linguagem e na produção de conteúdo para o website. A escolha interna pelas 5 diferentes línguas em que o conteúdo do projeto está disposto é ilustrativo da percepção e diálogo interno do projeto com a ideia de descolonialidades. O processo de tradução e da escolha das línguas serão debatidos dentro da perspectiva dos estudos da linguagem e história da diáspora africana.

Por fim, a última seção dedica-se à descrição e reflexão sobre a construção das imagens e identidade visual do Projeto Baquaqua. Entendendo linguagem como prática de significação e a sua importância dialógica [PIRES, 2011], discutimos nesta seção itens como logotipo, ilustrações e materiais dentro do livro educativo e a semiótica envolvendo a construção destes materiais visuais.

Cada uma das seções merece uma posterior escrita mais detida e expandida, mas trazê-las juntas e de maneiras interconectadas permite-nos pensar o projeto dentro de uma perspectiva transdisplinar. Dito isto, convidamos o leitor a conhecer o projeto (www.baquaqua.org) e a vida de Mahommah Gardo Baquaqua, nascido na África por volta de 1824, escravizado no Brasil em 1845, publicando seu relato autobiográfico em 1854 (Interesting Narrative, Biography of Mahoammah G, Baquaqua, A Native of Zoogoo, in the interior of Africa (A Convert to Christianity,) with a Description of That Part of the World; including the Manners and Customs of the Inhabitants, Detroit, 1854) como um abolicionista.

O Projeto Baquaqua tem como meta essencial a construção e a alimentação de um website para discutir a história afro-brasileira dentro de uma perspectiva atlântica, através da figura do ex-escravo e abolicionista Mahommah Gardo Baquaqua. Este personagem nasceu em uma família letrada de prósperos comerciantes africanos, foi desembarcado ilegalmente e escravizado no Brasil em Pernambuco, depois no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em 1847 ele fugiu para os EUA, junto a um carregamento de café. Tornou-se então um abolicionista no período em que morou no Haiti, estado de Nova York e Canadá. Em 1854 ele publica na cidade de Detroit o único relato autobiográfico, dentro do gênero slave narratives, sobre um africano escravizado no Brasil [VÉRAS, 2014]. Os últimos registros até então encontrados sobre ele datam de 1857. Nestas últimas cartas enviadas de Liverpool, na Inglaterra, Baquaqua continua a demonstrar sua vontade de voltar à África Ocidental [LAW; LOVEJOY, 2007].

As crianças brasileiras são ensinadas sobre "os africanos no Brasil". No entanto, muitas vezes elas só aprendem como estes vieram para o Brasil como escravos. Ao lado de imagens de tortura, navios negreiros e mercados de escravos, a maioria das crianças escolares é bombardeada com imagens de plantações de cana-de-açúcar ou café em seus livros didáticos. Em quase todas as lições sobre a diáspora africana para o Brasil, as imagens de plantações ou regiões de mineração sempre apresentam perspectivas de muito longe, com trabalhadores negros muito pequenos nos campos e/ou nas casas de produção de açúcar.



Fig. 01.
Ilustração “Sugar Mill” (Engenho de Açúcar). Henry Koster. Travels in Brazil. London, 1819 (Disponível em: http://www.loc.gov/pictures/item/89711148/, acessado em 25/02/2019)

Essas imagens e abordagens permite-nos perceber como a economia era operada. Elas ilustram a organização da plantation, mostra a realidade opressiva da escravidão e as condições de vida. Contudo esta abordagem apresenta certas limitações. Através desta não é possível enxergar pessoas. Não é possível pensar a agência destas pessoas dentro do sistema. Não é possível conhecer seus nomes, suas trajetórias, suas vidas. Dentro das salas de aula, as crianças (pretas, brancas, pardas, indígenas, mestiças) não conseguem ver isso. Eles não podem se identificar com estas histórias, nem desenvolver uma relação positiva com a trajetória das pessoas vivendo neste passado. Acreditamos que essa forma de tratar o para o ensino sobre a diáspora africana no Brasil é restrita e simplifica demais histórias complexas no centro da sociedade e cultura brasileira.

Como todos sabemos, os africanos e seus descendentes, para além da escravidão, casaram, tiveram filhos, construíram relações sociais, religiões diaspóricas, cultura, tecnologia. Eles tinham nomes, personalidade, contradições. Biografias poderiam nos ajudar com estes silêncios. O Projeto Baquaqua de história pública digital afasta-se das abordagens típicas sobre a história da África e do africano no Brasil. O projeto tem o potencial de expandir currículos atuais para oferecer aos professores, estudantes e também ao público em geral um espaço on-line para discussões sobre memória, identidade e agência africana. Pensando no conceito de Pierre Nora [1993, p. 16] de "vontade de memória", estamos ativamente construindo este espaço digital como uma ferramenta não apenas como uma plataforma on-line, mas também construir a figura de Mahommah Gardo Baquaqua como um símbolo de empoeiramento. Paul Lovejoy explicita que ao estudar a escravidão e o comércio de escravos, biografias podem captar detalhes da História. Relatos pessoais, mesmo se registrado em segunda mão, podem conter informações valiosas sobre cultura material, costumes e práticas de escravidão. Ao reinserir indivíduos na realidade da escravidão, as biografias colocam carne nos ossos do passado [LOVEJOY, 1997, p. 119].

Para além da produção de textos informativos que acompanham a galeria de documentos históricos, uma série de vídeos de entrevistas foram realizadas com especialistas no Brasil, EUA e Nigéria e Canadá. Os temas destes vídeos relacionam-se às experiências de M. G. Baquaqua e outros africanos na diáspora. Entre as temáticas retratadas nos videos estão o tráfico de escravos, o Califado de Sokoto, suicídios de escravos, os africanos muçulmanos no brasil, abolicionismo, etc. O acesso a estes materiais escritos e audiovisuais possibilita que o website contribua e seja usado como uma ferramenta para o trabalho de professores(as) em salas de aula do ensino básico.

A intenção primordial deste projeto é que ele seja acessado por pessoas em vários países do mundo Atlântico e seus materiais usados de forma criativa, nesta mesma dimensão. Tomando como conceito o envolvimento do público de vários países das Américas, Europa e África, o website é alimentado constantemente com novos conteúdos. A cada série de conteúdos inseridos, a página criada no Facebook para o Projeto Baquaqua (www.facebook.com/mgbaquaqua), faz chamadas para que o público os acessem, criando constantes acessos em vários países. Estas chamadas feitas de maneira constante são feitas pelo menos em português, inglês e francês.

A história de M. G. Baquaqua possibilita ao público que acessa suas memórias e materiais produzidos no projeto, a desconstrução de uma série de estereótipos negativos sobre os africanos no Brasil e sua descendência. Tal qual todos os outros africanos e africanas trazidos ao Brasil, M. G. Baquaqua antes de ser um escravo era ideias, crenças, vontades, esperanças, personalidade e contradições. O trabalho com sua biografia permite enxergar “gente”, pessoas para além do sistema escravista em que estavam inseridas. Perceber isto possibilita a construção de empatias e identificações por parte do público e a efetiva desconstrução de ideias racistas incrustradas em nossa história e sociedade.

O Projeto Baquaqua não é apenas um passo em direção à uma memória crítica da história da escravidão e dos africanos no Brasil. Ele também é uma iniciativa importante para essa discussão em diferentes espaços. Baquaqua tinha um nome, um rosto e uma família. Através das ações do projeto, este personagem pode ser tomado como um canal para construção de empatias com a trajetória de milhões de africanos durante a era da escravidão. Antes de tudo ele foi uma pessoa como os milhões de outras, que tiveram histórias e destinos passados no Benin, Brasil, USA, Haiti, Canadá e Reino Unido. Tendo o projeto um potencial para levantar debates em diferentes países do Atlântico, fez-se necessário transformá-lo para torná-lo acessível a um público mais amplo possível. Neste momento deparamo-nos com um problema de tradução. Não de uma língua primeira para uma segunda, mas de 5 diferentes línguas que em certo momento se entrelaçavam.

Traduzir o projeto Baquaqua levantou algumas questões-chave. Em primeiro lugar, nem toda a equipe lê e escreve em português, o que criou algumas dificuldades de tradução. Como a tarefa de encontrar alguém que pudesse ler e escrever em português, inglês, espanhol, francês e hauçá o suficiente para realizar traduções em todos os idiomas, decidiu-se que os textos originais seriam escritos em inglês. Como muito é perdido durante qualquer processo de tradução, ter os textos originais escritos em inglês facilitou a construção de uma equipe de tradutores, entre os próprios pesquisadores, capazes de ler a primeira língua e garantir que a essência original dos textos fosse mantida em suas traduções.

Um site multilíngue desta dimensão mostrava-se um projeto ambicioso, porém a escolha do número e das próprias línguas não foram aleatórias. Cada uma das 5 foi escolhida por uma razão específica relacionada à história de M. G. Baquaqua. O francês foi escolhido pois Baquaqua nasceu em Djougou (noroeste da atual República do Benin), passou três anos de sua vida no Haiti e também no Canadá, enquanto escrevia sua autobiografia. Em todos esses países o francês é falado como língua oficial. Ter o site em português é obviamente essencial já que Baquaqua passou três anos de sua vida no Brasil como escravo. Em adição a isso, a An Interesting Narrative – Biography of Mahommah G. Baquaqua (Uma interessante narrativa – Biografia de Mahoammah G. Baquaqua), como mencionado, é a única obra autobiográfica publicada por um africano escravizado no Brasil. Inglês foi selecionado pois Baquaqua foi enviado para Nova York, fugiu da escravidão, foi para o Haiti e, em seguida, voltou para o estado de Nova York, seguindo seu curso para o Canadá em 1853. Quanto ao espanhol, esta é uma língua essencial na região do Caribe onde Baquaqua permaneceu por 3 anos. Também foi necessário traduzir o site para a língua hauçá. A família de Baquaqua do lado materno era etnicamente hauçá. Portanto, Baquaqua também fazia parte do mesmo grupo, pois falava a mesma língua. O hauçá é uma língua chádica [CROZIER; BLENCH, 1992] e era uma língua comercial entre diversas cidades-Estado e reinos da África Ocidental no século XIX e hoje é falada por cerca de 44 milhões de pessoas em países como Nigéria, Níger, Benin, Burkina Faso, Camarões e Chade. A escolha desta última língua para conteúdos escritos, legendas de vídeos e mesmo para o áudio original de algumas entrevistas, também foi pensada dentro de um critério visando a construção do conhecimento dentro da perspectiva da descolonialidade.

O objetivo destas traduções não era apenas tornar o website multilíngue, mas também de criar uma página no Facebook em várias línguas, gerando debates e visibilidade para o projeto de história pública digital. As redes sociais permitem que o conteúdo do Projeto Baquaqua seja facilmente visto e descoberto, além de possibilitar o informem atualizado sobre novos materiais carregados periodicamente no site. A página do Facebook ainda serve de plataforma moderada de discussão e compartilhamento de ideais e experiências de arte, produção cultural e de história pública relacionadas com o projeto.

* * * *

Dentro do Projeto Baquaqua, parte da discussão essencial entre linguagens, construção de sentidos e objetivos atitudinais deve ser feita tomando por base a análise das imagens construídas para o projeto. Sob a perspectiva da semiótica a atribuição de significado não se dá apenas pela análise do signo em si, mas todo o contexto, além de todas experiências vividas pelo indivíduo. Nesta perspectiva, como parte essencial dos objetivos do projeto é de formação e educação de crianças e adolescentes, o uso de mídias e criações visuais e audiovisuais foram indispensáveis. O uso de tais ferramentas, além de um meio eficiente e atrativo para este público, possibilita a descoberta e a experimentação de elementos também estéticos. Isso foi pensado desde a criação das ilustrações dos materiais educativos até a própria identidade visual do projeto.

O método de criação de uma identidade visual se aproxima bastante dos métodos de criação de qualquer outra mídia de comunicação. Em nosso caso, nosso processo foi dividido em duas grandes etapas: a escolha da mensagem; e então a organização e definições de elementos gráficos para representá-la. O plano de um logo que representasse visualmente o projeto vinha sendo construído desde as primeiras reuniões introdutórias com as equipes de história e design. A ideia era que o logo funcionasse como um “pôster de filme”, apresentando para o público elementos suficientes para introduzir a narrativa e torná-la convidativa.

Como já citado, um dos objetivos centrais do projeto Baquaqua é o de repensar os significados e história do negro na diáspora e isso passa pela reconstrução de uma memória coletiva sobre o tópico. Esta história parte de referências que muitas vezes desconsidera, na trajetória dos escravizados nas Américas, elementos que os definem como seres humanos: suas crenças, sentimentos, reflexões e idiossincrasias. Na produção visual do projeto procuramos destacá-los. Para traduzir a individualidade do personagem escolhemos como primeiro elemento a “escrita”. Além de ser um meio que por si só carrega um caráter reflexivo, a escrita tem um papel crucial na narrativa de Baquaqua. A relação do personagem com a escrita foi um outro fator determinante para esta escolha. Baquaqua, como vários outros africanos muçulmanos na diáspora, também sabia escrever e esta ação era representante de sua origem, crença e família. Este fato guiou nossa escolha pela criação de um logotipo, ou seja, de um logo formado exclusivamente por elementos textuais.

Identificamos também que o árabe deveria ser um outro elemento de destaque na construção do logotipo. Esta foi a língua em que o Baquaqua foi alfabetizado pelo irmão mais velho enquanto aprendia os ensinamentos do Corão. Esse signo se fez presente na criação do logotipo, especificamente na escolha tipográfica e nas manipulações dessas tipografias. Ainda que o tipo não seja construído com letras do alfabeto árabe, ele traz elementos que cumprem a tarefa de fazer esta representação, mesmo que em um nível abstração. As letras que compõe o “Baquaqua” forma desenhadas tomando como traços as curvas do (khā') e (qāf), além de diacríticos do alfabeto árabe.

Fig. 02
Logomarca do Projeto Baquaqua. Criação de Tatiane Lima (Disponível em: http://www.baquaqua.org, acessado em 25/02/2019).

Um dos materiais, ainda em construção, a ser produzido pelo projeto é um livro ilustrado com atividades. A ideia é que crianças nos anos finais do Ensino Fundamental I (entre 9 e 11 anos) conheçam a história do Baquaqua de forma lúdica, construindo referências e ligações com suas próprias histórias. Vale lembrar que a escravidão foi apenas um dos elementos da experiência do personagem. Ele tinha uma família, amava a mãe, tinha seus gostos, preferências, amizades e amores. Esse livro conta com ilustrações representando Baquaqua e outras figuras que aparecem na sua narrativa, cartas e documentos históricos.

O método escolhido para a construção das ilustrações representado lugares e personagens históricos foi baseado no diálogo frequente entre os historiadores do projeto e a equipe de arte. Antes do início efetivo do processo de ilustração, a equipe reuniu informações, descrições de viajantes e iconografia histórica do século XIX que descreviam e retratavam detalhes sobre a época e os espaços frequentados por Baquaqua em sua trajetória. Locais específicos em cidades, roupas, adereços e penteados das pessoas foram alguns dos elementos analisados. Estas pesquisas e dados foram cruciais para o início dos trabalhos, pois isto embasou o time de arte com referências reais e fontes históricas. O próximo passo foi decidir como e o melhor estilo para contar esta história.



Fig. 03
Edifício da prefeitura de Nova York onde Baquaqua foi chamado para o julgamento de sua fuga em 1847. Ilustração de 1838, Lockwood, Manhattan Move Uptown, 2.



Fig. 04
Ilustração produzida por Tatiane Lima baseada nem ilustração de 1838 da prefeitura de Nova York para o livro ilustrado do Projeto Baquaqua.

Ao analisar o público alvo para o livro em construção, foi decidido conjuntamente que o caminho da abstração gráfica seria o mais adequado. Escolheu-se para tanto o uso do estilo cartoon, apropriando-se também de algumas referências estéticas de um estilo conhecido como chibi. O quadrinista Scott McCloud no seu primeiro livro Desvendando os quadrinhos define a estratégia do uso do cartoon:

Quando abstraímos uma imagem através do cartoon, não estamos só eliminando detalhes, mas sim, nos concentrando em detalhes específicos. Ao reduzir uma imagem ao seu significado essencial, um artista pode ampliar esse significado de uma forma impossível para arte realista [McCLOUD, 2004, p. 30-31].

O chibi, bastante usado na produção de HQ japonesas no estilo mangá, consiste basicamente em criar desenhos que tenham as proporções distorcidas, fazendo que a cabeça seja muito maior do que o normal. Essa é uma técnica muito conhecida por tornar os personagens mais “fofos”, e isso se dá pelo simples fato desta proporção ser baseada na anatomia de bebês humanos, nosso ponto fraco.   


Fig. 05
Recorte de ilustração de Mahommah Gardo Baquaqua em A.T. Foss and Edwards Mathews. Facts for Baptist Churches. Utica, 1850.



Fig. 06
Ilustração de Mahommah Gardo Baquaqua produzida por Tatiana Lima em atividade interativa de livro ilustrado do Projeto Baquaqua.

Uma das atividades inseridas no livro interativo ilustrado conterá imagens de Baquaqua para colorir. Isto pode parecer apenas uma atividade recreativa, porém esta foi pensada tomando como base duas estratégias no processo de construção positivada de uma identidade negra: a auto-identificação e a interação. Tente lembrar de desenhos animados e histórias que você conhece e que apresentam objetos inanimados e criaturas com comportamentos e até feições humanas? Scott McCloud [2004] conta um fato bem conhecido dos estudiosos de construções de narrativas: Humanos são viciados em humanos. Para ser mais específico, nós somos fissurados em “nós” e em nossas próprias experiências. Por isso não é incomum gostar de uma música, uma série ou um personagem com os quais nós nos identificamos ou que tenha relação com nossa trajetória.

Ao trazermos as imagens ilustradas do Baquaqua, o aproximamos de outras referências e linguagens as quais o público alvo está habituado. As imagens construídas foram todas baseadas em fontes históricas do século XIX e diálogo constante com historiadores especialistas da História da África, do Atlântico e da abolição da escravidão. Por tanto, o referencial histórico foi respeitado e elaborado/ construído visualmente. Em adição a este fato, o estilo e as atividades escolhidas têm como intento a construção de uma identificação positiva das crianças com a história do personagem e, por conseguinte, com a história da diáspora africana.



Fig. 07
Ilustração para colorir produzida por Tatiane Lima de Baquaqua e seus novos amigos na cidade de Chatham, Canadá, em 1854 (Disponível em: http://www.baquaqua.org, acessado em 25/02/2019). A imagem foi inspirada em fotografia de 1860. Chatham-Kent Museum, 85.27.2.15, N674, Bk 2#15.

As atividades de interação do livro como um todo proporciona momentos de imersão, atraindo a atenção da criança e possibilitando uma reflexão mais profunda ao envolver outras experiências sensoriais e cognitivas. Destacamos uma vez mais as atividades de pintura dos personagens da história de Baquaqua. Estas são extremamente oportunas quando o ponto em discussão é a da positivação da identificação racial. A mídia infantil ainda é bastante carente de representatividade não-branca. Desde de brinquedos até quadrinhos, personagens negros ainda são pontuais e desproporcionais comparando a outros. Quando trazemos este debate para o Brasil, pensando a composição étnica de sua população brasileira, esta discussão é ainda mais central. Queremos que as crianças pensem a cor de suas peles e percebam as diferenças como diferenças. Não como hierarquias.  Os próprios membros da família do Baquaqua tinham diferentes cores de cores de pele, que além de distinguir os personagens, conta também sobre a história da origem do Baquaqua e do contexto sócio-político de sua época e de sua origem.



Fig. 08
Ilustração para colorir produzida por Tatiane Lima de Baquaqua e sua família em Djougou (Disponível em: http://www.baquaqua.org, acessado em 25/02/2019). A imagem foi inspirada nas descrições presentes na biografia de Baquaqua, bem como em suas cartas.

Por fim, o Projeto Baquaqua, utilizando-se de diferentes linguagens e estratégias próprias da História pública digital vêm atingindo seus objetivos conceituais e atitudinais. Novos conteúdos são constantemente inseridos, trazendo não só novos conhecimentos dentro da temática, como também produzindo debates através das redes sociais. No plano de seus objetivos atitudinais, o projeto apresenta-se como uma ferramenta para construção de uma auto-identificação e apreciação positivada da história e memória da Diáspora Africana. Esta história deve ser contada a partir da escravidão, mas não tomando a pessoa dentro do sistema como resultado único do próprio sistema. Fazendo isso, tendemos a desumanizar os próprios sujeitos uma vez mais. Mahommah Gardo Baquaqua foi escravo, mas também foi filho, irmão caçula, fugitivo, muçulmano, católico, protestante e abolicionista. Ele teve sua agência e se fez humano dentro de um sistema embrutecedor. Estas múltiplas facetas é o que o projeto pretende mostrar.

Referências
Bruno Rafael Véras de Morais e Silva é coordenador do Projeto Baquaqua e do Freedom Narratives Project. Atualmente é doutorando em História e professor tutor na York University, Canada.
Tatiane de Lima Santos é designer e ilustradora (UniJorge-BA) com experiência em branding, motion graphics, ilustração e produtos educacionais. Atualmente trabalha com desenvolvimento de interfaces de aplicativos digitais.

CROZIER, D.; BLENCH, R. M. Index of Nigerian Languages. Dallas: SIL, 1992.

DOUGHERTY, Jack; NAWROTZKI, Kristen (ed.). Writing History in the digital age. Michigan: The Michigan University Press, 2013.

LAW, Robin; LOVEJOY, Paul. The Biography of Mohammah Gardo Baquaqua - His Passage from Slavery to freedom in Africa and America. Princeton: Markus Wiener Publishers, 2007.

LOVEJOY, Paul, "Biography as Source Material: Towards a Biographical Archive of Enslaved Africans," in LAW, Robin (ed.). Source Material for Studying the Slave Trade and the African Diaspora. Stirling: Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, 1997.

LOVEJOY, Paul. Identidade e a Miragem da Etnicidade: a jornada de Mahommah Gardo Baquaqua para as Américas. Revista Afro-Ásia, Salvador, 27, 2002, p.9-39.

MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2004.

NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.

PIRES, Vera Lúcia. A interação pela linguagem: prática social mediadora das relações socioculturais. Nonada Letras em Revista. Porto Alegre, ano 14, n. 17, p. 87-100, 2011.

VÉRAS, B. R. Memórias diaspóricas de Djougou para as Américas. Revista África(s), v.1, n.1, ian./iun. 2014. p. 227-236.

VÉRAS, B. R. et al. Projeto Baquaqua. Disponíel em: www.baquaqua.org (Acessado em 20/02/2019).

16 comentários:

  1. É essencial estudar a história da África pré-colonial, para escarparmos da visão de uma África homogênea e parada no tempo, onde só enxergamos pobreza e miséria. Falar de África é falar da diversidade. No Brasil cerca de um terço dos africanos que foram trazidos de forma forçada do continente africano aqui se destinaram. E hoje em dia apesar de sermos o país com estatística de maior número de negros de afrodescendentes fora da África, ainda estamos longe no critério inclusão dessas etnias, uma grande prova disso são os livros didáticos geralmente representam África estereotipada, como se não houvessem uma vida antes da escravidão nem transformações após. um exemplo disso é quando se representa o conceito de família geralmente nos moldes Europeu.

    Diêgo Luiz Góes santos Menezes

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    1. Caro Diêgo,
      Você está certíssimo. Deixe-me completar alguns de seus pontos e sugerir alguns materiais bem interessantes.

      Anderson Oliva é Professor da UNB e suas análises sobre representações nos livros didáticos são muito interessantes. Você pode acessar um de seus artigos aqui:
      http://www.scielo.br/pdf/eaa/v25n3/a03v25n3.pdf


      Em relação à sua sentença "No Brasil cerca de um terço dos africanos que foram trazidos de forma forçada do continente africano aqui se destinaram", o número é cerca de 45%.
      Você pode consultar o
      www.slavevoyages.org.
      Essa é uma ferramenta incrível e acabou de ser reformulada e relançada recentemente na MSU. Vários outros projetos digitais sobre escravidão também foram lançados ou relançados lá. Você pode encontrar mais informação lá também.

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute


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  2. O conceito racial foi substituído de fato pelo cultural? Pergunto isso porque ouço falar a respeito sobre isso mas vejo herança desse conceito.

    Diêgo Luiz Góes santos Menezes

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    1. Oi Diêgo, não entendi bem essa questão.

      Mas talvez esse artigo destes alunos da UFRB possa te ajudar. Anderson Oliva, sobre o qual falamos acima, foi professor lá por muito tempo, também.

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute

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  3. Cabe questionar, então: as demandas sociais antirracistas têm sido capazes de deslocar
    hierarquias raciais no currículo? Que resistências, ou melhor, que forças hegemônicas têm sido
    preciso enfrentar no combate ao racismo na universidade? De que maneiras o racismo se perpetua
    nos processos iniciais de profissionalização, mais especificamente, na formação de professores?
    Como os professores de História – disciplina a que muitas vezes se atribui a responsabilidade de
    narrar identidades e explicar a constituição da sociedade – estão sendo formados neste contexto
    de demandas sociais antirracistas? Como os licenciandos, que circulam na universidade e outros
    espaços de formação, estão se posicionando frente às disputas pela educação das relações
    étnico-raciais e significando sua trajetória e suas práticas docentes?

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    1. Ueliton,

      Suas questões são essenciais em diferentes leveis.
      Este artigo traz o debate para um campo mais amplo, dos estudos pós-coloniais.
      Tenho certeza que você achará interessante:
      https://even3.blob.core.windows.net/anais/109089.pdf

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute

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  4. Contudo, o mesmo
    autor alerta para o fato de que “se estiverem integradas em ambiente de ensinoaprendizagem, proporcionam processos de aprendizagem necessários para os
    alunos atingirem os objetivos educacionais desejados”.
    Portanto, pensar a História por meio da cognição histórica situada implica em
    colocar o aluno frente as suas próprias convicções e definições dos fatos históricos,
    não limitando a observação dos mesmos a partir de narrativas prontas e “impostas”
    verticalmente, mas ampliando seu campo de observação a partir da exposição de
    que a História é multiperspectivada, bem como suas possibilidades de
    aprendizagem.

    UELITON DE JESUS SANTOS

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    1. Olá Ueliton, que autor você está se referindo?
      Mas o tema e alguns dos pontos que você está colocando parecem alguns dos levantas por Prats neste artigo. Por sinal um dos melhores que já li problematizando esta questão epistemológica:
      http://www.ub.edu/histodidactica/images/documentos/pdf/ensinar_historia_ciencias_sociais_principios_basicos.pdf

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute

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  5. As discussões sobre as relações existentes entre os mitos e as realidades sobre tudo que envolve o processo de escravidão e ressignificaçao do negro no Brasil, ainda caminha lentamente dentro das escolas brasileiras. Sob a ótica do autor,quais as formas ou meios poderiam ser utilizados na práxis docente para promover transformação conscientizadora na educação, no tocante a evidenciação das estruturas sociais nas quais estavam inseridos os negros antes da escravidão, ou melhor, antes de se tornarem escravos em terras brasileiras?

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    1. Ricléuma,

      De uma maneira prática, existem alguns materiais bem interessantes e que se encaixam no ponto por você problematizado acima.

      Um deles é o Viajando pela África com Ibn Battuta:
      https://www.youtube.com/watch?v=gidBURFVAmU

      Aqui vai um pouco mais sobre contexto sobre esta fonte Histórica e informações relacionadas:
      http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308192237_ARQUIVO_VERAS,B.R.-ViagemeAlteridadenoMedievoAfricano.pdf

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute

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  6. Bom dia, Bruno Rafael Véras de Morais e Silva e Tatiane de Lima Santos, parabenizo-os pelo bom texto e a importante e necessária abordagem. Destaco aqui a importância das mídias digitais no contexto atual da sociedade e consequentemente nos processos educacionais. Um projeto importante como o Projeto BAQUAQUA foi e vem sendo realizado em linguagem e estrutura capazes de atingir o público além da academia e isso é fundamental, minha pergunta é sobre a abrangência atual desse projeto na educação básica, já existe alguma ação governamental de implementação e uso desse projeto de forma sistemática na Educação Básica brasileira e se existe quais os primeiros retornos, impressões e análises do mesmo no referido segmento educacional?
    ALAÉVERTON MAICON DE ANDRADE

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    1. Olá Alaéverto,

      Obrigado por sua questão. O website está sendo totalmente reformulado e incluirá uma série de outros materiais.
      Por hora temos materiais para colorir e serem usados de maneira contextualizada pelo professor.

      Com o novo website reformulado, nós começaremos uma nova campanha de mídia e de inserção em programas públicos.

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute

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  7. Excelente texto e iniciativa de mostrar uma outra perspectiva a respeito da escravidão. Estão de parabéns pelo projeto. Minha pergunta é sobre a inclusão desse tema e dessa trajetória em sala de aula pelo currículo, ou seja, a visibilidade dessa autobiografia tem estado presente no currículo e em livros didáticos escolares? Há tradução em português da biografia de Baquaqua? De que forma essa trajetória é tratada pela historiografia, como indivíduo excepcional? Obrigada pela oportunidade. Att, Monica Rossato

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    1. Olá Monica!
      O website em si já traz alguns materiais e ideias. Algumas possibilidades adicionais e sugestões podem ser pensadas a partir do Projeto África Aparece. Este projeto ganhou o Prêmio Antonieta de Barros (http://blogs.diariodepernambuco.com.br/educape/project/a-africa-somos-todos-nos/?doing_wp_cron=1555099510.7132420539855957031250).

      Baquaqua foi tratado dentro das questões mais centrais pensadas para este projeto.
      http://africaaparece.blogspot.com/

      O livro sobre Baquaqua está sendo acabado! Descobri mais informações sobre ele e sua família em Katsina, no Norte da Nigéria, e estou incorporando tudo isso no manuscrito.

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute

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  8. Estudo muitos pesquisadores do campo da educação e relações raciais da sociedade brasileira, e percebi no corpo do texto e nas referências, que você não dialoga com eles. E isso despertou certa curiosidade, em saber o porque desse "suposto" distanciamento? E quando será a publicação do livro impresso no Brasil?

    Att, Luzinete Santos da Silva

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    1. Olá Luzinete!

      Obrigado por suas observações! Está faltando tanta gente em minhas referências. Mas existem alguns clássicos que devem ser comentados adicionalmente.

      Como respondi num comentário acima Anderson Oliva é excelente.
      Este artigo é importante:
      http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/19124

      O "Critical Multiculturalism: Rethinking Multicultural and Antiracist Education" editado por Stephen May é um clássico e traz perspectivas importantes dentro de um debate mais amplo sobre educação para o multiculturalismo.
      https://books.google.ca/books/about/Critical_Multiculturalism.html?id=vZQRMicBmTYC&redir_esc=y

      Bruno R. Véras
      York University
      Tatiane Lima
      The Harriet Tubman Institute

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