Monaquelly Carmo de Jesus


A FIGURA DE LAMPIÃO E A APRENDIZAGEM HISTÓRICA


O presente artigo tem como objetivo apresentar um relato de experiência com uma seqüência didática dirigida a alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Esta seqüência tem como objetivos principais fazer com que os alunos possam refletir sobre a existência de diferentes pontos de vista a respeito de um mesmo fato histórico a partir da discussão sobre o fenômeno do cangaço e as razões da fama de Lampião, bem como que percebam a importância do uso de diversas fontes para o estudo da História.

Lampião é uma figura bastante controversa. Em sua época, os jornais o tratavam como um monstro a ser temido e destruído. Cidades inteiras o odiavam enquanto outros o admiravam. Hoje, ainda permanecem visões diversas sobre ele: bandido, herói, figura importante da resistência na Primeira República, símbolo da cultura nordestina.
        
Essa multiplicidade de visões a respeito de um mesmo personagem é uma rica fonte de discussão para o Ensino de História, já que ajuda a mostrar a importância do olhar do historiador e do sujeito histórico para a construção e a escrita da História. Ao mesmo tempo, explicita a importância de ir além dos documentos oficiais e se utilizar de diversas fontes para o estudo da História, inclusive revelando a importância da Cultura para a formação do imaginário popular e do discurso histórico.

O Cangaço

O fenômeno do Cangaço não é sinônimo de Lampião. Para Pericás, o termo cangaço existe há muito tempo, mesmo que talvez não com o mesmo significado pelo qual entendemos hoje. Mas é possível afirmar que o termo existe pelo menos desde o início do republicano, já que aparece de maneira constante em documentos oficiais da época. (2010, p.14). O termo teria surgido, segundo Antônio e Carlos Araújo, a partir do trabalho dos jagunços ou capangas (2010 p. 9). Uma teoria é que veio da palavra canga, um tronco usado como instrumento de tortura para escravos africanos e trabalhadores livres. Daí teriam surgido ditos como “nesse pescoço não se bota canga”, para exprimir altivez, independência e dignidade. Outra hipótese é que teria vindo da cangalha ou canga de boi, que ligava o boi ao carro, já que o carro de boi teve um papel importante na paisagem rural nordestina e ajudou a construir uma “imagem” do sertão.

Da mesma maneira, também não foi com Lampião que surgiram este tipo de grupos de banditismo rural. Albuquerque, por exemplo, fala da existência do cangaço desde o século XVIII (2012 p. 14). E mesmo no seu período de atividade, o seu bando não era o único. Só entre 1919 e 1927, havia em torno de 54 bandos atuando no Sertão e no Agreste Nordestino, praticando diferentes formas de cangaço. Mello aponta três: o cangaço-meio de vida, aquele em que a atividade de cangaço se torna uma “profissão”; o cangaço de vingança, onde o cangaceiro quer apenas vingança e logo que a consegue abandona o cangaço; e o cangaço de refúgio, quando os homens se tornavam cangaceiros para proteger-se de uma perseguição (2004 p. 89).

As fontes históricas utilizadas

Como bem disseram Berutti e Marques, “as fontes históricas ou documentais são [...] fundamentais. Afinal, não existe História sem fontes.” (2009, p. 56). É importante que, no Ensino de História, levemos os alunos a compreender não apenas fatos históricos, mais o próprio método Histórico. É importante que percebam o papel da sociedade como um todo, e não apenas de nomes vultosos, no desenvolvimento dos eventos históricos e na compreensão que se tem destes. Que a História não é feita só de aspectos políticos, mas também econômicos, sociais e culturais. E isso pode ser feito ao colocar o aluno como protagonista na construção do conhecimento, como partícipe dessa descoberta da História, a partir do uso de fontes.

Devemos levá-los a perceber que essas fontes históricas podem ser de diferentes tipos. Não só documentos oficiais, mas todo o registro deixado pelo tempo. Assim, para essa sequência didática são utilizadas fotos (antigas e atuais), jornais da época, fontes orais, e músicas do gênero forró.

A Seqüência Didática

Esta sequência teve como tempo estimado 4 aulas de 50 minutos, embora na prática tenha levado mais tempo. O primeiro momento tem como objetivo apresentá-los à temática e estimulá-los à busca por respostas a partir da pergunta: “Lampião: herói, vilão ou vítima?”. Esta pergunta é potencializada com a exibição de diversas imagens divididas em dois grupos: imagens que mostram Lampião como símbolo cultural (lembrancinhas, nomes de restaurantes, fantasias, entre outras) e imagens que o apontam como um criminoso (capas de jornais, fotos de sua cabeça decapitada).


Fig 1.

Os alunos se entusiasmaram com o tema e deram várias opiniões, que se dividiam entre herói e vilão, mas estiveram abertos a buscar a resposta.  As fotos dos cangaceiros foram importantes para chamar a atenção, já geraram bastantes comentários a respeito da aparência deles e da maneira como foram mortos.



Fig. 2

A partir da observação dessas imagens os alunos puderam perceber que os jornais da época encaravam os cangaceiros como bandidos, ao mesmo tempo em que discerniram que o artesanato e outros símbolos culturais representam lampião como alguém bom, um herói. Sendo assim,qual é a verdade? Ele foi um herói ou um vilão? A pergunta “Qual é a verdade”, além de gerar engajamento, ainda proporcionou uma discussão sobre a existência de uma “verdade histórica”.


Fig. 3

Para avançar na discussão, foi solicitado aos alunos que fizessem uma entrevista com 5 pessoas de diferentes idades para perguntar: já ouviu falar de lampião? O que sabe sobre ele? Para você, ele é um herói ou vilão? Além disso teriam que, agora divididos em grupos, pesquisar em sites diferentes, as respostas às seguintes perguntas: Qual era o nome completo de Lampião? Onde nasceu? Onde morreu? O que ele fez como cangaceiro? Por que recebeu o apelido de Lampião? O site usa algum adjetivo relacionado a ele? Por que se tornou cangaceiro?

Tanto as entrevistas quanto as pesquisas pretendem levar os alunos a reconhecer as diferentes perspectivas de um mesmo fenômeno e perceber como a maneira como a História é contada influencia na perspectiva que se tem dela.

As diferenças de resultados entre os sites geram um intenso debate entre os alunos, com alguns alunos defendendo que Lampião foi um vilão e outros rebatendo essa idéia, de acordo com o posicionamento apresentado na fonte pesquisada. Essa diferença de posicionamento, bem como algumas inconsistências entre as informações levaram a uma discussão sobre a confiabilidade das fontes, a diversidade de versões e interesses e a idéia maniqueísta de bem versus mal. Grande parte dos alunos chegou à conclusão de que é uma questão de perspectiva, que ele foi herói para uns e vilão para outros. Para os que foram vítimas dos cangaceiros, seus amigos e os descendentes, bem como para aqueles que acompanharam a caça aos cangaceiros pelos jornais, ele é sem dúvida um vilão. Para os que se beneficiaram direta ou indiretamente de suas façanhas e seus descendentes, um herói.

Ainda assim, alguns continuaram com a mesma visão a respeito do personagem que tinham no início. Isso é válido, já que o importante aqui não era formar uma opinião sobre o personagem histórico estudado, mas que fossem expostos a diferentes perspectivas a partir de diferentes fontes e à necessidade de, na vida em sociedade, aceitar opiniões diversas da sua para alcançar uma boa convivência.

Aqui é importante fazer algumas considerações teóricas sobre a discussão. Além da questão dos benefícios recebidos, Mello relaciona a aceitação do cangaço pelo sertanejo naquele período ao próprio contexto histórico, social e cultural no qual o fenômeno estava inserido. Havia no período um sentimento de revolta contra as elites e uma crença de que a vingança era, mais que um direito, o único caminho para a justiça, já que existia uma descrença nos procedimentos punitivos aplicados pela justiça pública. Para muitos sertanejos daquele tempo, o herói era o homem valente, que lutava, de maneira simbólica e literal, pelo que era direito e o que era justo. Ou seja, havia uma idéia de heroísmo social demonstrado pela valentia.

“Por tudo isso, não é de estranhar que o cangaço tenha sido uma forma de vida criminal orgulhosa, ostensiva, escancarada. [...] A cultura sertaneja abonava o cangaço, malgrado o caráter criminal declarado pelo oficialismo, com as populações indo ao extremo de torcer pela vitória dos grupos com que simpatizavam, quase como se dá hoje nos torneios entre clubes de futebol. A legenda dos capitães de cangaço mais famosos vai sendo esculpida de forma sedimentar pelos versos dos cantadores de feira, emboladores e cegos rabequeiros, todos dispostos a cantar a última façanha de guerra do grupo de sua preferência” (MELLO, 2004, p. 23).

Outro fator importante para a mitificação de Lampião se à inteligência, ao carisma e ao “marketing pessoal” do próprio Lampião. O cangaceiro trabalhou na construção da sua imagem usando a imprensa, cuidando de sua aparência (ALBUQUERQUE, 2012 p. 15), e até mesmo posando para ensaios fotográficos. Ainda a sua relação próxima com Padre Cícero, outra figura venerada pela população sertaneja (2010, p. 42), contribuiu para que fosse percebido de maneira positiva pelos sertanejos.

Com relação às entrevistas feitas, estas revelaram essa ambiguidade na maneira como Lampião é encarado também na comunidade onde está inserida a escola. Na turma do 9º B, foram 30 entrevistados o reconheceram como um herói, 8 o apontaram como herói e vilão ao mesmo tempo, 3 não sabiam dizer e 53 o apontaram como vilão. Já no 9º C, houve um maior número de respostas dizendo que ele era um herói. A presença de um grande número de respostas “vilão” também se justifica pelo extenso número de relatos de atrocidades atribuídas a Lampião e seu bando em Sergipe, conforme defende Costa, em seu livro “Lampião em Sergipe” (2011 p. 101), embora autores como Araújo e Araújo desmintam essa ideia, dizendo que um grande número de bandidos cometia atrocidades na região valendo-se do nome do cangaceiro famoso (2010, p. 97). Também se pode perceber dessas entrevistas a visão maniqueísta do fenômeno do cangaço, já que apenas 8 pessoas responderam que ele poderia ter sido um pouco das duas coisas, e ninguém propôs um adjetivo diferente desses.

Para dar destaque à influência da cultura na formação do imaginário popular, bem como exercitar o trabalho mais aprofundado de análise de fonte histórica, os alunos, divididos em grupos, tiveram que analisar uma música sobre o tema. Para facilitar a compreensão, foram escolhidas músicas que tivessem o cangaço como tema principal ou que fizessem uma citação significativa. É claramente perceptível que todas essas músicas falam de Lampião como um herói ou, pelo menos, fazem uma defesa de seu comportamento.

O questionário de análise foi produzido a partir das dimensões de análise da canção popular propostas por Hermeto (2012, p. 144-148). As dimensões são: Dimensão material, dimensão descritiva, dimensão explicativa, dimensão dialógica e dimensão sensível. A dimensão material se refere ao tipo de suporte em que se encontra a narrativa e a sua linguagem; a dimensão descritiva se refere ao tema e objeto da narrativa; a explicativa à abordagem do tema e a versão construída sobre o objeto; a dialógica às referências culturais com as quais o texto dialoga; e a sensível aos sentimentos e afetos que levaram à produção do texto e que foram provocadas pelo texto. Abaixo estão alguns trechos das músicas utilizadas:

A ponteira e o peão(2008)
Flávio José

Ainda me lembro
Do meu tempo de menino
Quando eu via Celestino
Desenhando Lampião
[...]

Lampião(2011)

Ê Cangaceiro,
Onde mora lampião
Mora junto de São Pedro
Lhe contando a região
Sertão, meu sertão
Onde está Lampião
O famoso cabra da peste
E Maria sua paixão
Nasceu na terra de valente
Onde a faca não só corta cana corta gente
Viveu na terra de valente
Onde a faca dança e roda corta e mata gente
E quem morre primeiro deixa o amigo pra enterrar
É mais uma cruz que marca uma história pra contar
Você recado de gente
De cara valente que nem Lampião
Não tem mais cavalo e nem sela
E seu maço de vela já parou de queimar
[...]




[...]
Na escuridão dos homens
Noite clara chegará
Alegria e liberdade
Com certeza haverá
Vida, vivida, virará, vida-bandeira
Pião rodar a ponteira
Na palma da minha mão
Viva Maria Bonita de Lampião
Virgulino foi o rei, majestade e capitão
Lampião flecha de fogo
Por isso heróis do sertão
Toda força que sufoca e que oprime a multidão
Braço forte, mão armada, quem não tem fez a razão
Encanta o povo
O velho e o novo
Feito um bando de heróis a gritar em procissão
[...]

Lampião Falou(1981)
Composição: Aparício Nascimento e Venâncio

Eu não sei porque cheguei
Mas sei tudo quanto fiz
Maltratei fui maltratado
Não fui bom, não fui feliz
Não fiz tudo quanto falam
Não sou o que o povo diz
Qual o bom entre vocês?
De vocês, qual o direito?
Onde está o homem bom?
Qual o homem de respeito?
[...]
O cangaço continua
De gravata e jaquetão
Sem usar chapéu de couro
Sem bacamarte na mão
E matando muito mais

De maneira geral, os alunos conseguiram responder as questões, podendo perceber as diferentes facetas de análise possíveis a partir de uma música, apesar de ter havido algumas dificuldades com respeito à interpretação da letra e de entender o que efetivamente estava sendo pedido na questão. Ainda assim, a atividade serviu para que os alunos exercitassem suas habilidades de reflexão, análise e pesquisa, muito necessárias ao estudo da História, já que analisaram e refletiram sobre letra, música, clipe, pesquisaram sobre o compositor, e observaram comentários associados à música, na área de comentários do youtube.

Conclusão
De maneira geral, os objetivos da seqüência foram alcançados, já que os alunos utilizaram diversas fontes, entre elas a música, para tentar compreender o fenômeno histórico e participaram ativamente, e até de maneira apaixonada, nas discussões, reconhecendo os diferentes pontos de vista a respeito de Lampião, respeitando a diversidade de opiniões.

Se o envolvimento da turma permitir, pode-se ainda ampliar a discussão para refletir sobre a construção de mitos, o contexto de opressão e abandono governamental que leva à aparição de banditismos, o anacronismo na percepção dos fatos do passado levando à empatia histórica, ou mesmo uma reflexão pessoal a partir da idéia de herói, conforme sugerem Araújo e Araújo:

“Fica o convite à reflexão. O que você pensa do que foi exposto aqui? Em que medida essas questões lhe dizem respeito? Quem é o herói que habita dentro de você e por que você o vê como tal? Quais são os valores que ele apregoa, e quais são os atos que ele pratica?” (2010, p. 101).

Fazer com que os alunos reflitam e escrevam a partir da proposta das perguntas acima pode contribuir para o desenvolvimento da consciência cidadã e de seu papel como sujeitos históricos.


Referências
Monaquelly Carmo de Jesus é mestre em Ensino de História pela UFS e professora da rede pública de Sergipe.

ALBUQUERQUE, Ricardo. Iconografia do Cangaço. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012

ARAÚJO, Antônio; ARAÚJO, Carlos. Lampião: herói ou bandido? São Paulo: Editora Claridade, 2010

BERUTTI, Flávio; MARQUES, Adhemar. Ensinar e Aprender História. Belo Horizonte: RHJ, 2009

COSTA, Alcino. Lampião em Sergipe. Aracaju: Editora Diário Oficial, 2011.

HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de História: Palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

MELLO, Frederico. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.

PERICÁS, Luiz. Os Cangaceiros: ensaio de interpretação histórica.São Paulo: Biotempo, 2010.



2 comentários:

  1. Boa Tarde. Primeiramente, parabéns pelo trabalho, o Cangaço sem dúvidas é um dos temas mais estimulantes para se pensar o Brasil no início do século XX, em uma turma de 9 ano principalmente.
    Deu pra entender bem a imagem de Lampião que eles tiveram,mas fiquei curioso em saber como esses alunos viam o Cangaço em si, nas muitas linguagens que foram utilizadas, principalmente as músicas, é possível notar as características do Cangaço numa perspectiva mais ampla (Inclusive a participação feminina como a de Maria Bonita.
    Quais as impressões dos alunos sobre o fenômeno do Cangaço naquela época ?
    Ismael Lacerda Brasileiro.

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    Respostas
    1. Olá!

      Muito obrigada pela leitura e pelo elogio.

      Infelizmente não chegamos a discutir o fenômeno do cangaço para além da figura de Lampião e a imagem dele a partir dos diferentes pontos de vista apresentados no texto, dados os objetivos elencados para a sequência.
      Sem dúvida uma atividade centrada na discussão do Cangaço de maneira mais ampla ou especificamente na participação feminina, também seria muito rica.

      Monaquelly Carmo de Jesus

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