“13
DE MAIO EM VOZES E ENTRELINHAS NEGRAS”: DIÁLOGOS ENTRE ENSINO DE HISTÓRIA,
POESIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA
“Morena é minha cor
Ser negra é uma graça
E para deixar bem
claro
Que amo minha raça”
(Aluna 1, 6º ano,
2018)
O trecho supracitado
refere-se ao Concurso de Produção e Declamação de Poesias, intitulado “13 de
maio em vozes e entrelinhas negras”, realizado no Núcleo Educacional João
Fernando Sobral, Porto União – SC, no ano de 2018. A atividade contou com a
participação de três 6º anos, dois 7º anos e um 8º ano, totalizando a média de
100 crianças que fizeram parte de todas as dinâmicas que antecederam o
Concurso. Neste sentido, este texto tem por objetivo relatar a experiência
realizada nesta instituição de ensino, buscando enfatizar os anseios que
motivaram sua elaboração e, por fim, apresentar alguns resultados obtidos.
Face a estas
colocações, esta narrativa que oportunizará conhecer, ainda que de forma breve,
os intuitos acima delineados e, sobretudo, a importância de se discutir as
questões étnico-raciais no seio escolar a partir de procedimentos metodológicos
que quebram com a rotina estudantil, seja pelo modo como são expostas as
temáticas, a maneira de avaliar os trabalhos elaborados e, principalmente, a oportunidade
de perceber suas produções serem visibilizadas e apreciadas por colegas e
avaliador@s. Portanto, se trata de um trabalho que requer dedicação de ambas as
partes e que necessita se furtar um pouquinho do currículo tradicional, isto é,
abordar questões que os livros e materiais didáticos pouco corroboram para a
formação de uma consciência histórica e conscientização das razões que
fomentaram as premissas da atividade em si. Dito isso, espero que a leitura
seja agradável e que possibilite trocas de opiniões, experiências e sugestões
para práxis futuras.
(RE)APRESENTANDO O 13
DE MAIO
Bem, buscando
proporcionar um novo olhar para os debates vinculados ao 13 maio, as atividades
que antecederam o concurso de produção e declamação de poesias contaram com
oficinas expositivas dialógicas, isto é, @s estudantes foram envolvid@s nas
dinâmicas de diferentes formas, sobretudo, convidad@s a expor suas iniciais
que, partindo de suas consciências históricas, permitiam o diálogo entre
saberes prévios e a produção de novos conhecimentos. Essa estratégia
metodológica, segundo Lopes (1991) estimula as crianças a compartilhar,
produzir e reelaborar as informações que são frutos de sua cultura familiar, ou
obtidas através das mídias digitais e televisivas – e, algumas vezes,
arraigadas a estereótipos. Essa troca de conhecimentos prévios permite que @s
envolvid@s sintam-se valorizad@s e visibilizados quanto a sua bagagem cultural
e intelectual, como também, o fato de que um conhecimento não é transmitido,
mas sim, dialogado por meio da troca de experiências. Ser professora não me
torna detentora da ‘verdade’, entretanto, alguém que traz diferentes
informações e vieses para serem problematizados, questionados e, por fim,
constituírem sentido e somarem-se enquanto conhecimento.
Nesta acepção, quando
se fala em consciência histórica, entende-se que cada criança possui saberes
que foram elaborados e partilhados durante sua trajetória de vida, os quais, valem-se
dos mais diversos meios de aquisição, seja a conversa em família ou colegas, na
escola ou por meio de canais de informações, sendo esta, de acordo com Rüsen
(2007), a soma de todos os saberes adquiridos e produzidos que, em alguma
medida, possibilitaram o desenvolvimento de significados, interpretações e
orientações para a vida prática. Possuir uma consciência histórica não quer
dizer que somos uma espécie de arquivo humano ou depósito de informações, visto
que nada é ‘colocado’ em nossa memória ou consciência. Deste modo, pensar em
temas a serem ministrados em sala de aula nos leva a concordar com Freire
(1981), na medida que o autor explica que os conteúdos devem dialogar com
nossas experiências práticas e fomentar a compreensão de que somos agentes
históricos, apt@s a atuar, participar e transformar o mundo. Diálogo e troca de
saberes é a chave para um ensino democrático e integrador, portanto, uma
estratégia válida para trazer luz aos debates étnico-raciais (correlatos aos 13
de maio) e que, em alguns casos, tem sua legitimidade questionada, tomando como
exemplo a inexistência de um dia para comemorar a imigração europeia, ou cotas
para ‘brancos’ e demais críticas vazias e superficiais de grupos que
desconhecem a História do Brasil – e sua própria história enquanto brasileir@.
Face a estas
colocações, é de suma importância discutir o processo histórico do 13 de maio
não só pelo fato em si, mas pelos desdobramentos que antecederam e o sucederam,
buscando assim, dar visibilidade as resistências afro, ações abolicionistas e
formas de emancipação do trabalho escravizado que, para além de um documento
escrito, também foram funcionais, como é o caso das fugas e formação de
quilombos. Além disso, apresentar o protagonismo afro e suas maneiras de
resistir culturalmente são múltiplas, podendo apresentar-se através de sujeitos
específicos que lutaram contra a escravidão no âmbito jurídico, como Luis Gama,
ou questionava o modelo social e político a partir do campo intelectual, como
Castro Alves, ou ainda, por meio da força e de revoltas, como Zumbi e Dandara
dos Palmares, ou Luisa Mahin.
Dar nome, rosto e
personalidade à resistência humaniza o processo. E, enquanto pessoas
(estudantes e docentes), humanizando as lutas, dores e conquistas,
possibilitamos uma aproximação com os sujeitos históricos do presente e com nós
mesmo. Inclusive, possibilitando a percepção que as lutas hoje continuam e que
a resistência está em nós, por isso, ‘ninguém solta a mão de ninguém’.
Trazendo o relato para
a parte mais específica da atividade, pode-se dizer que as dinâmicas foram
divididas em 3 partes:
a) a primeira esteve
relacionada a buscar conhecer e dialogar com os saberes prévios, utilizando um
questionário que tinha cinco perguntas:
- O que você sabe
sobre o 13 de maio?
- Como os povos
africanos vieram para o Brasil?
- O que você acha que
mudou na vida das pessoas após o 13 de maio?
- Você acha que
existem contribuições culturais africanas no Brasil?
- Você acha importante
estudar a cultura afro-brasileira?
Respondidas estas
questões, foi solicitado que houvesse a leitura e, conforme iam sendo
apresentadas as respostas, foram colocadas no quadro algumas palavras-chave
que, em seguida, foram debatidas coletivamente, como o fato de não existir um
dia sobre ‘a consciência branca’, racismo e religiosidade. Inclusive, um dos
pontos de maior interesse é a religiosidade, a qual é apresentada de forma
estereotipada e, em dois casos específicos, com níveis de intolerância. Contudo,
a partir do momento que se apresenta o que é Umbanda, Candomblé, Orixás e
algumas razões para o modo como a religiosidade africana e afro-brasileira é
estereotipada, fica notório a reelaboração do discurso escrito e oral acerca
desta temática. Portanto, dialogou com o interesse particular discente em
conhecer, bem como, com o próprio cotidiano estudantil, pois existem
especificidades que acabam passando despercebidas e que comungam com a
cosmogonia afro, entre elas, pular 7 ondas.
b) O segundo momento
destas oficinas pautou-se no uso de slides que abordavam a trajetória histórica
da vinda dos povos africanos para o Brasil, esclarecendo que as formas de
escravidão que operaram no continente africanos nos séculos anteriores estavam
vinculadas a justificativas de caráter cultural e/ou religiosas, como é o caso
da escravidão doméstica e da escravidão islâmica. No entanto, a ênfase das
discussões foi dada as formas de resistência cultural, tomando como ponto de
reflexão as obras “Na senzala uma flor”, de Robert Slenes (1999), e “A greve
negra de 1857 na Bahia”, de João José Reis (2007). Deste modo, apresentou-se a
tipologia dos trabalhos escravizados e a forma como se operacionalizavam
resistências sutis da cultura africana em solo brasileiro.
c) O terceiro passo
foi a produção de poesias. Esse foi um ponto um pouco frustrante, pois, acabei
solicitando a participação de profissionais que poderiam auxiliar no sentido de
explicar a estrutura de elaboração de poesias, afinal, parte d@s envolvid@s
eram do 6º ano e esta era uma das primeiras experiências com este estilo de
escrita. Como o auxílio não ocorreu, parte das crianças se sentiu desmotivada.
Para tentar reverter esse sentimento, acabei reduzindo a dinâmica somente as
aulas de História, rompendo com a oportunidade interdisciplinar (sugerida pela
Lei 10.639/03 e pelos movimentos sociais, a fim de não deixar recair apenas para
História estas discussões). Dito isso, selecionei poesias de Castro Alves, um
rap do Gabriel, o pensador e discursos de personalidades negras, como Martin
Luther King, citado com recorrência nas dinâmicas anteriores.
O resultado das
produções de poesia ficou em torno de três temas principais: o sofrimento da
escravidão, combate ao racismo e a história e tráfico de african@s. É possível
dizer que os escritos trouxeram vários elementos presentes e discutidos durante
as oficinas, entre eles, trechos de filmes, como 12 anos de escravidão, séries
e novelas, entre elas, A escrava Isaura e Raízes, o que influenciou a
perspectiva de sofrimento e história da escravidão. No que tange o combate ao
racismo, foi interessante pelas argumentações que apontavam para as novelas o
papel de difusora de estereótipos e situações de racismo, principalmente,
quando @ personagem é negr@ e acaba sendo representado e/ou associado a favela,
serviços domésticos ou, como na novela Malhação, em constantes humilhações pela
personagem principal por ser negra, filha de mãe solteira e nordestina. Estas
observações revelam o quanto as crianças estão atentas para essas circunstâncias
e, não é porque passa na televisão, que elas concordam com estas práticas e
discursos.
Sem mais delongas,
selecionei três poesias que permitem verificar os resultados obtidos e que, em
certa medida, por se tratar de uma experiência nova para @s discentes (e para
mim), sem dúvida superou nossas expectativas e somou em nossas consciências
históricas e vidas práticas, inclusive, nos emocionando na parte das
declamações que ocorreram em forma de evento, com jurad@s, prêmios e lágrimas
(de emoção, superação e amizade). Essa parte, infelizmente, terá que ser
apresentada em outro evento, em virtude da extensão do texto.
Imagem 1. Escravidão
no Brasil.
Fonte: 13 de Maio em
Vozes e Entrelinhas Negras, 2018.
De forma
bem sugestiva, a escravidão é apresentada enquanto uma necessidade do senhor do
engenho, o qual não media esforços para manter @s escrav@s no trabalho, cujos
castigos marcavam corpo e alma. As fugas são apresentadas como meio de alcançar
a liberdade e há a relação entre passado e presente, destacando o preconceito
como um estigma deste contexto histórico, bem como, apontando para o ideal de
igualdade.
Imagem 2. O
racismo.
Fonte: 13 de Maio em
Vozes e Entrelinhas Negras, 2018.
Esta poesia
é aquela que inicia este texto e que traz em seu seio poético a sua valorização
e auto reconhecimento enquanto negra, argumentando que o racismo não leva a
nada, pois as diferenças que algumas pessoas ressaltam para enaltecer ou
depreciar a imagem de alguém, para além de um critério de pseudo superioridade,
na verdade se trata de um pensamento egocêntrico e egoísta. Cabe destacar que,
entre as temáticas apresentadas nas oficinas, a questão da cor e do
reconhecimento foi bem impactante, pois levei uma lista de ‘cores’ que havia no
censo de 1970, em que as pessoas respondiam que possuíam a cor azul, castanha,
castanha-clara, castanha escura, chocolate, cor de café, cor de couro, mestiça
e assim segue uma lista de 135 cores diferentes, entre as quais, nota-se uma
resistência em aceitar-se como uma pessoa preta ou negra. Logo, a auto
identificação tocou e sensibilizou algumas crianças que relataram situações de
discriminação e o modo como isso as afetava.
Fonte: 13 de Maio em
Vozes e Entrelinhas Negras, 2018.
Essa poesia
me chamou muita atenção, pois trouxe elementos significativos no tocante as
oficinas, principalmente, sobre o processo histórico. Primeiro ponto, quando
diz “os negros como eram chamados”, já sugere que isso significa que as pessoas
em si, não se reconheciam como tal. Isto é, sabiam de sua origem, Fula,
Benguela, Angola e etc. ‘Negros’ foi uma imposição colocada nestes povos antes
da própria escravidão. Neste sentido, @ discente traz dados que se referem ao
translado, citando, por exemplo, os tubarões, os quais foram um exemplo
comentado a partir do texto “O navio negreiro”, de Marcus Rediker (2011), que
tece exemplos interessantíssimos acerca do translado, condições, revoltas e os
tubarões. Ao fazer a comparação entre um homem branco e negro, como também,
ressaltar a preferência pela morte, novamente revela-se a contribuição da
consciência histórica, pois um dado apresentado a partir de filmes comentados
nas oficinas. Por fim, traz outro ponto debatido com colegas: o pós abolição, o
que gerou opiniões e exemplos acalorados no sentido de explicar e perceber a
situação de ex-escrav@s e, como foi colocado, que essa ‘liberdade’ não ocorreu
“completamente”.
Para
finalizar, entende-se que as discussões étnico-raciais podem ser dialogadas de
formas múltiplas, ora se apropriando destas datas específicas, como é o 13 de
maio e, para além de trazer um discurso que só enaltece e cultua a assinatura
da Lei Aurea, possibilitar discussões que dialogam o processo histórico com
questões do hoje, do eu e da nossa história como elemento que permite esse trânsito
diacrônico do passado, bem como, experiências, sujeitos e
percepções do ‘ontem’ com o ‘hoje’ e a maneira como isso lega à nós novas
possibilidades de entender um fato histórico como algo maior, mais humano e
sensibilizado, o qual responde e ao mesmo tempo nos traz mais perguntas sobre
alguns ‘por quês’ sociais, entre eles, a discriminação e o racismo. Dito isso,
para lutarmos contra essas mazelas, precisamos compreender contextos,
fortalecer nossos argumentos e resistir a esse passado que nos assola e ainda
discrimina uma parcela significativa da nossa sociedade. Parcela esta,
responsável por muito do que somos hoje.
Referências
Jessica
Caroline de Oliveira, licenciada em História pela Universidade Estadual do
Paraná, Pós-Graduada em História e Cultura Afro-brasileira pela Universidade
Cândido Mendes, Pós-Graduada em História, Cultura e Arte pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa, onde também obteve o título de Mestra em História,
Cultura e Identidade, Doutoranda em História, Poder e Movimentos Sociais pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
FREIRE, P. A importância do ato
de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1981.
LOPES, A. O. Aula expositiva:
superando o tradicional. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.) Técnicas
de ensino: Por que não? Campinas, SP: Papirus, 1991.
OLIVEIRA,
J. C. África na sala de
aula: considerações sobre a inserção do ensino de história da África e da
cultura afro-brasileira no currículo escolar. In: BUENO, André; CREMA, Everton
e ESTACHESKI, Dulceli. (Org.) Pensando
Amanhãs: falando sobre o ensino de história.. 00ed.Rio de Janeiro/União da
Vitória, 2015.
RÜSEN, J. História viva: formas e funções do conhecimento histórico. Jörn
Rüsen; tradução de Estevão de Rezende Martins. – Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2007.
Jéssica, parabéns pelo trabalho. Me identifico muito com a temática e na Faculdade Municipal de Palhoça - SC onde sou professor, coordeno o NEABI -Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e indígenas. É uma pena que não teve envolvimento de outros colegas para deixar a atividade mais produtiva. Você colocou que durante a etapa 1 (debate) surgiu assuntos como "não existir dia da consciência branca". Como você trabalhou com alunos do 6º ao 8º ano gostaria de saber em qual turma esse assunto surgiu, como ele foi questionado e como você tratou dessa e da temática das cotas com eles?
ResponderExcluirJackson Alexsandro Peres
Boa noite, Jackson. Agradeço pela leitura e questionamento. Bem, a pergunta partiu de um discente 'novo' na turma de 7º ano, a qual já contava com um 'histórico' bem articulado destes debates, afinal, tinham participado de oficinas, explanações e intervenções desde o ano anterior. Dito isso, a pergunta veio em tom de deboche a fim de questionar a 'validade' das atividades. Nesta acepção, apesar do texto ter ficado pouco esmiuçado nestes debates, a partir desta colocação, foi possível reintroduzir uma discussão realizada no ano anterior acerca das minorias sociais e a própria representação negra nas diferentes mídias. Exemplos e comparações entre 'brancos' e 'negros' possibilitou demonstrar a premissa de existir essa data, a qual possui suas raízes historicamente introduzidas no imaginário, nas relações sociais e demandas políticas. Espero ter atendido sua questão. Abraços.
ExcluirBoa noite, discuti o 13 de maio em minha dissertação de mestrado, em entrevistas com alunos e professores da escola pesquisada muitos ainda olham a data como um grande feito da classe branca da época, ficando as escuras os movimentos negros clandestinos contra a sociedade escravagista, diante disto como foi a recepção em sua atividade quando reembaralhado as verdadeiras informações que culminaram na abolição?
ResponderExcluirJÊIBEL MÁRCIO PIRES CARVALHO
Boa noite, Jêibel. Agradeço pelo questionamento e leitura do texto.
ResponderExcluirOlha, nas turmas de 7º e 8º ano, foi mais fácil desdobrar as atividades, pois já realizei dinâmicas correlatas. No 6º ano, foi um pouquinho mais complicado pela sistematização do currículo base, por exemplo. Mas, explicitado os objetivos, foi possível problematizá-los. De forma geral, pode-se dizer que a consciência histórica foi muito importante, tanto no sentido de enfatizar o sofrimento do escravizado, como o papel do racismo e da discriminação hoje na sociedade. Senti uma dificuldade discente em entender o processo de emancipação do trabalho escravizado no tocante às leis, mas, ainda que haja uma relevância na oficialização do 13 de maio, notei que as fugas e os quilombos eram elementos recorrentes, o que desvelou um entendimento acerca do protagonismo destes sujeitos que, sem necessariamente assinar documento, permitiram outras formas de liberdade. Espero ter respondido sua questão. Abraços.